Se você é uma dessas pessoas que franzem o cenho e olham
para os lados quando alguém comenta a divisão sectária do Oriente Médio,
perguntando-se “mas o que são xiitas e sunitas mesmo?“, aproveite que acabo de
voltar de uma viagem ao Iraque (leia mais no Orientalíssimo, clicando aqui).
Cercado por bandeirolas da peregrinação xiita rumo a Karbala e de imagens de
Hussein, neto do profeta Maomé, me senti na obrigação de responder à seguinte
pergunta:
O que são os xiitas?
São muçulmanos. A resposta parece atravessada, mas na
verdade é um detalhe que às vezes foge de vista quando a discussão esquenta.
Falamos hoje em divisões e em violência sectária, mas os xiitas e os sunitas
são ambos muçulmanos e seguem a mesma religião –acreditando na base do islã de
que só existe um deus e Maomé é seu profeta. A diferença é histórica e
política, para além das divergências religiosas. Como resumiu a mim um jovem
iraquiano durante um café: “xiitas rezam com os braços para baixo, sunitas
rezam com os braços cruzados”.
No que eles são diferentes, historicamente?
Na escolha de quem daria continuidade à liderança do profeta
Maomé, morto em 632. Maomé havia revolucionado a península Arábica com o livro
sagrado que recitara (o Corão), superando as relações tribais pela ideia de uma
comunidade religiosa, chamada “umma” em árabe. Mas, quando morreu, Maomé não
deixou um herdeiro. Parte dos muçulmanos preferiu que o líder da comunidade
fosse escolhido entre seus seguidores (esses são os chamados sunitas). Os
xiitas são aqueles que preferiram um líder que tivesse laços de sangue com
Maomé (especificamente Ali, seu primo e genro). Os sunitas venceram a disputa e
elegeram Abu Bakr, primeiro califa do islã.
Mas é só um detalhe?
Não. É uma perspectiva. Sunitas apostavam, à época, na ideia
de um líder por consenso. Xiitas preferiam uma perpetuação por linhagem de
sangue. Essa ideia acompanhou os grupos nas décadas seguintes à morte de Maomé,
com violentas disputas pelo poder culminando na morte tanto de Ali quanto de
seus filhos, Hussein e Hassan, celebrados como mártires entre os xiitas.
Fazendo uma pausa: o que quer dizer “sunita” e “xiita”, em
árabe?
Sunita vem da “sunna”, que é o nome dado às práticas e aos
ensinamentos de Maomé. Xiita vem de “shiat Ali”, ou “partidários de Ali”.
Eles vão brigar para sempre?
Não. A ideia de uma tensão sectária constante é recente.
Conversei recentemente com anciões iraquianos, por exemplo, que me narravam as
décadas passadas no país. “Ninguém sabia quem era xiita e quem era sunita. Não
usávamos esses nomes”, me disse um senhor. O assunto foi mais urgente, durante
a história, quando foi usado por governos para se perpetuar e alienar inimigos,
a exemplo do que fizeram o ex-ditador Saddam Hussein e o ex-premiê Nuri
al-Maliki.
Que países são xiitas?
Há grandes concentrações de xiitas no Líbano, no Irã, no
Iraque, no Bahrain, no norte do Iêmen e em regiões de Afeganistão e Paquistão,
entre outros. Não à toa há sólidas relações entre a milícia libanesa Hizbullah,
o Iraque e o Irã, para desgosto dos EUA, que apostam na liderança sunita da
Arábia Saudita. Mas xiitas são a minoria no islã –por volta de 10% ou 20% do
total, a depender das fontes.
E a Síria?
Os xiitas estão na região oeste. Ali predomina o ramo
alauita, que é uma vertente do xiismo. Esse grupo é representado pelo atual
ditador sírio, Bashar al-Assad, que enfrenta hoje uma violenta insurgência
contra o seu regime. Mas, apesar do espectro da disputa sectária, a guerra na
Síria não é exatamente “sunitas versus xiitas”. Há, por exemplo, sunitas moderados
e sunitas radicais, como o Estado Islâmico.
As pessoas dizem, no Brasil, que fulano é “radical xiita”.
Todo xiita é radical?
Não. A expressão não faz sentido. O Estado Islâmico, por
exemplo, é sunita. Existem radicais xiitas, sunitas, cristãos, ateus e o que
mais precisar. Ou seja: existem radicais. Ponto.
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