Por Alysson
Muotri
“O autismo é, para as doenças
neurológicas, o mesmo que a África para os assuntos sociais”, definiu o
jornalista Caryn James, em declaração publicada no “New York Times”, em 2007.
Com a frase, James buscou enfatizar o emergente reconhecimento público sobre o
autismo durante a década passada. Movimentos emergentes pro-África acabaram por
polarizar opiniões dos envolvidos, causando certa confusão na percepção pública
sobre o assunto. Afinal como ajudar a África? O mesmo acontece com o autismo
hoje em dia.
Parte da polarização de opiniões sobre
o autismo está relacionada com seu caráter heterogêneo: chamamos de autista um
garoto de seis anos de idade que não fala, um jovem de 20 anos que estuda
computação e tem “tiques estranhos” e um homem de 40 anos que segue uma rotina
religiosa e não tem interesse na vida social. “Autismos” seria a melhor
definição para esse espectro de comportamentos sociais. Não existe um autismo
típico, cada caso tem sua própria natureza. A outra contribuição da polarização
vem dos profissionais de saúde. Pessoas com autismo são vistas sob óticas
diferentes dependendo do profissional – seja pediatra, neurologista,
psiquiatra, terapeuta comportamental, dentista, psicólogo, fonoaudiólogo ou
tantos outros que se relacionam com o autista.
É a velha história dos cegos e do
elefante, em que cada um apalpa uma parte do bicho e acredita estar diante de
um objeto diferente. Cada um tem uma perspectiva diferente da condição autista,
com opiniões fortes de como o autismo deve ser encarado e tratado. Outros
ignoram completamente o problema, buscam aceitação, levantando a bandeira da
diversidade, rejeitando opções de tratamento e cura. É óbvio que isso tudo
deixa os familiares confusos e pulveriza a força politica pró-autista.
Pois bem, no espírito da conciliação,
de encontrar o que é comum e válido entre as diversas tribos pró-autistas,
proponho quatro perspectivas de comunidades interessadas em autismo que se
especializaram tanto na forma como falam sobre o autismo que se tornaram reinos
ou feudos isolados e distintos. Cada reino tem suas verdades, mas todos falham
na tentativa de entender ou mesmo reconhecer que suas verdades não são aceitas
fora de suas fronteiras.
Primeiro Reino: o autismo como doença. A condição autista foi descrita pela
primeira vez pelo médico Leo Kanner em 1943. Desde então, a pesquisa médica tem
sido focada encarando o autismo como se fosse uma doença. Nesse reino
encontram-se médicos, pesquisadores, familiares e pacientes. Todos veem o
autismo como uma doença do cérebro que pode ser tratada com medicamentos.
Investigam a melhoria do diagnóstico, intervenções e a cura como objetivo
final. Teorias médicas evoluíram da mãe-geladeira para formas complexas da
neurogenética. Buscam-se marcadores moleculares da doença e novas drogas. Ao
contrário dos que veem o autismo como uma deficiência, buscando melhores
serviços e suporte, esse reino foca na lógica puramente científica para
justamente reduzir o número de serviços e suporte dado ao autista. Querem
cortar o mal pela raiz.
Segundo Reino: o autismo como
identidade. Nesse reino, os integrantes substituem a classificação de
autismo como doença por uma questão de diversidade – ou mesmo de
identidade. Esses, juntos com as comunidades de deficientes, veem o
autismo como sendo apenas mais uma entre milhares de variações cognitivas da
humanidade, com necessidade de aceitação, não de cura. Pessoas com autismo leve
que podem viver de forma independente, mas que não se sentem totalmente
acolhidas socialmente, fazem parte desse grupo. Em vez de buscarem formas de se
tornarem “normais”, focam na inclusão e aceitação social. Exigem reconhecimento
de que o autismo é uma forma de pensar diferente, que pode produzir soluções
inovadoras para problemas difíceis. Muitos veem os resultados genéticos como
uma forma de eugenia, não acreditam em explicações de causalidade e acham que
tratamentos são uma forma compulsória de conformismo social. Como as
comunidades de deficientes, membros desse reino buscam apoio da sociedade,
melhorias educacionais, serviços ocupacionais e direitos cívicos.
Terceiro Reino: o autismo como lesão. Talvez um dos argumentos mais acalorados sobre o autismo
seja o papel da vacina como causadora de uma lesão levando ao autismo. Membros
dessa comunidade são pais que observaram regressões de desenvolvimento de suas
crianças após vacinação. Mesmo frente a fortes evidências epidemiológicas de
que vacinas não causam autismo, defensores dessa teoria sugerem que esses
estudos estejam mascarando casos raros que foram causados por vacinas. Ao
contrário do grupo anterior, os pacientes autistas nesse caso são afetados de
formas severas, não verbais, com disfunções imunológicas, gastrointestinais e
ataques epiléticos. Familiares desse grupo, sentindo que a ciência e medicina
ainda não geraram medicamentos eficazes, buscam alternativas como dietas
específicas e desintoxicação, entre outras. A grande distinção desse grupo é
que acreditam o autismo fora causado por uma determinada lesão cerebral,
causada por algum episodio específico na historia de vida do individuo.
Portanto, levantam a bandeira da prevenção, reconhecendo que ao descobrir a
causa poderíamos frear a prevalência do autismo.
Quarto Reino: o autismo como modelo. Da mesma forma que cientistas usam a cegueira para
entender o sistema visual, membros desse grupo buscam no autismo a oportunidade
de entender o cérebro social. Esse grupo é composto primordialmente por
neurocientistas interessados em compreender o comportamento social humano,
usando ferramentas como neuroimagem e neuroanatomia em tecidos cerebrais. O
objetivo é mapear o cérebro para encontrar vias nervosas que processam
informações socais específicas, tais como reconhecimento de faces, postura em
grupo e teoria da mente. Esses cientistas apostam em modelos animais ou estudos
de ressonância magnética do cérebro humano como instrumentos importantes para
se ganhar insights sobre a natureza humana, sem necessariamente se preocupar
com a causa ou cura do autismo.
Reconheço que esses quatro reinos não
necessariamente representam todo o universo do espectro autista. No entanto,
descrevem de forma ampla perspectivas distintas que hoje em dia dividem
opiniões sobre o autismo. Esses feudos criaram estruturas super organizadas
como sociedades profissionais, ONGs ou redes sociais, para se fortificarem.
Infelizmente essa atitude serviu também para criar barreiras entre si,
dificultando interações construtivas e trocas de idéias entre seus membros
menos extremistas. Assim, podemos entender as críticas que sofrem os
geneticistas, que veem o autismo como doença e buscam diagnóstico pré-natal,
que seriam agentes abortivos dos autistas da próxima geração.
Mas quem afinal está certo? Da mesma
forma que ainda não sabemos qual a melhor politica para ajudar a África, não
existe uma resposta clara para o autismo. É provável que todos os cegos estejam
certos parcialmente. O importante é notar que cada um dos reinos autistas tem
oportunidades de oferecer algo de construtivo. Precisamos tanto de melhores
diagnósticos e tratamentos, como melhores serviços, estratégias de prevenção e
um entendimento mais apurado do cérebro social humano. Acredito que quanto mais
os membros desses grupos se mantiverem isolados, pior será para o autismo. Acho
que deveríamos buscar o oposto, abrindo a fronteira desses reinos e favorecendo
a fertilização cruzadas de ideias. Essa atitude pode mostrar o que existe de
comum entre esses reinos. Por exemplo, a luta por melhores serviços
profissionais que atendam a demanda autista. Outro exemplo seria a de criar um
centro de excelência que testasse sem bias idéias vindas das diversas áreas.
Propus algo assim para o Brasil recentemente e fiquei pasmo com a recepção positiva
de pessoas com opiniões bem diferentes sobre o autismo o que sugere que a
proposta mereça ser considerada.
Com o crescente número de crianças
autistas tornando-se adultos com autismo, a situação começa ficar crítica e
requer ação imediata. Penso que nada de muito positivo vá acontecer se cada
grupo insistir na sua própria visão. Será uma pena olharmos do futuro para o
que acontece hoje e concluirmos que poderíamos ter lutado juntos por algo
transformador, buscando cooperação ao invés de conflito. Acho é possível
unirmos forças para atingir metas a curto prazo, como melhores escolas para os
autistas, e também soluções a longo prazo. Dessa forma teremos um mundo melhor
para crianças e adultos autistas.