Muitas novidades científicas,
discutidas amplamente em âmbito internacional, às vezes demoram a chegar no
Brasil. Na área de células-tronco isso é ainda mais preocupante. Lembro que o
país ainda refletia sobre o uso de células-tronco embrionárias humanas quando o
mundo já tinha deixado essa discussão de lado pela reprogramação genética.
Acredito que a restrita massa crítica nacional nessa área, somando-se à
superficialidade das relações internacionais típicas da nossa comunidade
científica, sejam parte do problema. Mas isso não vem ao caso agora.
Recentemente, grupos de cientistas de diversas nações vêm se reunindo para
discutir restrições ao uso de enzimas de edição do genoma em células-tronco
pluripotentes. A ideia é gerar um moratório sobre alterações no DNA que possam
ser transmitidas de forma hereditária. O assunto é polêmico e importante, por
isso resolvi tratá-lo aqui, na esperança de alertar autoridades nessa área do
conhecimento para que o país não continue passivo nessas discussões.
Nas últimas décadas, enzimas artificiais que modificam o DNA tem ficado cada
mais fáceis de usar e acessíveis. Além disso, nos últimos anos essas enzimas
estão cada vez mais específicas, como no caso das CRISPR/Cas9, enzimas
altamente eficientes. É difícil encontrar um laboratório de biologia molecular
hoje em dia que não esteja utilizando essas ferramentas.
A facilidade assusta: da mesma forma
que a tecnologia pode ser usada para corrigir defeitos genéticos em doenças
humanas, pode também ter aplicações estéticas ou cognitivas, como a busca de
uma maior inteligência. De forma simples, pode-se hoje em dia manipular a
hereditariedade humana, algo que alguns anos atrás era considerado apenas
teórico. É justamente esse o dilema ético que está sendo fervorosamente
discutido no mundo.
Com o poder de reparar ou alterar qualquer gene humano, estamos nos
confrontando com uma questão fundamental sobre decidir o futuro genético da
humanidade daqui para frente. Seria tomar o controle ativo da nossa própria
genética, interferindo nas forças naturais da seleção natural.
Na Europa e nos EUA, a ideia é criar um
consenso sobre o uso dessas ferramentas de edição genética. Nos EUA, por
exemplo, é muito provável que qualquer uso humano tenha que ser aprovado pelo
FDA (Food and Drug Administration), órgão fiscalizador americano.
Porém, existe uma preocupação com países que ainda não começaram a perceber
importância dessas discussões e, portanto, estariam ainda relaxados ou
desprevenidos nas questões regulamentais. Uma preocupação é do estabelecimento
de clínicas em “paraísos biotecnológicos mais flexíveis”, se aproveitando do
atraso nessa discussão ética para começar trabalhos envolvendo edição de
células germinativas.
Ao contrário do conceito de terapia
gênica, cujas alterações genéticas morrem junto com o indivíduo, a manipulação
em células germinativas propagaria novas variantes genéticas direto no pool
genético de populações humana. As consequências são difíceis de se imaginar,
pois sabemos muito pouco sobre como o ambiente altera ou interage com o genoma.
O mesmo pode-se dizer quando aplicarmos esse conhecimento em modelos animais:
corremos o risco de alterar completamente a biosfera, afetando o estilo de vida
de diversos seres vivos no planeta.
Do ponto de vista ético, existem pelo menos duas visões sobre a modificação em
células germinativas: uma é pragmática e busca o balanço entre o risco e o
benefício; a segunda sugere que a humanidade teria que impor limites no que é
possível.
Na teologia, católicos são, em geral,
contrários à ideia de “brincar de Deus”. Já outras religiões, como o islamismo,
acreditam que é função humana melhorar o mundo. Dá para perceber que não existe
consenso e será preciso discutir o assunto considerando diferentes perspectivas.
Semana passada, a Sociedade Internacional de Células-Tronco divulgou um
memorando dando apoio ao uso científico, em laboratório, mas restringindo o uso
clínico dessa tecnologia de edição genética, pelo menos por enquanto. Acredito
que a maioria dos países irão se posicionar rapidamente sobre o assunto, pois
diversos grupos privados já estão se armando para oferecer esse tipo de alteração
genética em futuras crianças.
Acredite, leitor, estamos vivendo um momento transformador, mesmo que você
nunca tenha ouvido falar sobre isso antes pela mídia convencional. Estimular
essa discussão fascinante no Brasil irá aproximar nossos cientistas e políticos
das decisões internacionais nessa área, auxiliando a otimizar as discussões
feitas pela sociedade brasileira no nascimento de uma nova era na biologia e
genética. Não podemos perder o bonde mais uma vez.
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