Muito antes de o Brasil sediar a Copa do Mundo de 2014,
nascia em Pernambuco um projeto pioneiro no tratamento de pequenas infrações em
eventos esportivos. Com a instalação do Juizado Cível e Criminal do Torcedor de
Recife, em 2006, surgiu também o programa Futebol Cidadão, que já atendeu mais
de 2 mil torcedores em conflito com a lei.
Idealizador
do projeto, o juiz Aílton Alfredo de Souza percebeu que a melhor forma de
combater a violência em estádios é por meio de consenso e de adequação de penas – um dos principais pilares do sistema de
juizados criado há quase 20 anos (Lei n. 9.099/1995). “Na época, houve uma onda
de violência entre torcedores em Recife, com muita gente detida. Pensamos em
uma solução que não gerasse impunidade e que ao mesmo tempo tivesse efeitos
positivos na vida do infrator”, lembra o magistrado.
Nos
dias de jogo, o Juizado do Torcedor atua em regime de plantão nos estádios, com
a presença de juiz, promotor, defensor, conciliador e servidores – já foram
contabilizadas 776 ações desde 2006. Para lá são encaminhados os casos de menor
potencial ofensivo, como tumulto, prática ou incitação de violência, ação de
cambistas e posse de drogas.
Quando
há acordo com os envolvidos, os conflitos são resolvidos no próprio estádio em
cerca de meia hora. Além de aplicação de multa, a principal medida adotada pelo
juizado é o afastamento dos infratores dos estádios nos dias de jogo. Para
garantir que a punição está sendo cumprida, os autores são obrigados a
comparecer na sede do juizado, onde participam das atividades do programa
Futebol Cidadão enquanto as partidas estão em andamento.
A
possibilidade de não ser condenado em ação penal levou Airton de Carvalho, 21
anos de idade, a aceitar o acordo proposto pelo juizado, mas ele admite que a
experiência superou suas expectativas. Torcedor fanático do Santa Cruz, ele foi
detido no ano passado por iniciar tumulto a caminho de um jogo no estádio do
adversário. “Quando me pegaram, nunca esperei parar em um lugar assim. As
pessoas te entendem, são comunicativas, orientam em tudo, não só sobre futebol.
Eles dão uma lição de moral para a pessoa se orientar e saber o que aconteceu”,
conta.
Cultura de paz –
Sob a coordenação de uma assistente social, o Futebol Cidadão oferece
palestras, atividades culturais e até cursos profissionalizantes durante o
tempo de afastamento dos estádios, que dura, em média, de três a seis meses.
“Trabalhamos questões tão diversas como respeito às diferenças, relações de
gênero e até como se comportar em uma entrevista de emprego”, conta a
assistente social Deolinda Brandão, que atua no Juizado do Torcedor desde 2009.
Em
geral, os participantes têm de 18 a 23 anos de idade, não concluíram o ensino
médio e ganham até dois salários mínimos. A taxa de evasão do programa é baixa,
em torno de 3,5%, assim como a reincidência, que não passa de 2% – geralmente relativa a cambistas e não
àqueles que praticam violência. Segundo Deolinda, os participantes se tornam
multiplicadores de uma cultura de paz. “Já teve caso de um rapaz que disse que
estava pronto para bater na mulher, e então lembrou da palestra que fizemos
sobre violência doméstica e graças a isso não cometeu o crime”, conta.
O
esforço do grupo tem dado resultados também nos estádios, com redução de
infrações em mais de 80%. “A primeira turma chegou com 80 pessoas, agora são
entre 10 a 15 pessoas. Eles saem daqui como amigos e eu pergunto porque não
pode ser assim sempre, porque eles acham que pessoas que nem conhecem devem ser
inimigos”, avalia Deolinda.
A
experiência no Futebol Cidadão foi tão marcante para Melquisedec Cavalcante que
o jovem de 19 anos decidiu deixar a torcida organizada do Sport. “Percebi que
esse não é o caminho, o programa me fez ver que a violência não leva a lugar
algum”, conta. Ele diz que, antes, sempre participava dos tumultos, até o dia
em que acabou detido porque um colega de torcida quebrou o teto de um ônibus.
Agora, diz que prefere assistir aos jogos com tranquilidade.
O
projeto Futebol Cidadão concorreu ao Prêmio Innovare em 2008, na categoria juiz
individual. Anos mais tarde, a experiência em Recife foi aproveitada pelo
Conselho Nacional de Justiça no contexto das atividades do Fórum Nacional de
Coordenação das Ações do Poder Judiciário da Copa das Confederações Fifa 2013 e
da Copa Mundo Fifa 2014.
Coordenador
do Fórum da Copa do CNJ, o conselheiro Paulo Teixeira credita a boa atuação dos
juizados durante o evento ao fato de já existirem experiências pioneiras como a
de Pernambuco. “Não partimos do ponto zero. Alguns estados já tinham estrutura
montada para atender à demanda e ajudaram a levar para outras capitais. Com
essa linha de ação, pudemos fazer com que juizado especial mostrasse à
população seu real sentido, facilitando os processos e a conciliação”, analisa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário