São Paulo -
Estudos mostram que o período que vai de zero a 3 anos é o mais importante para
o desenvolvimento do cérebro. Com os devidos estímulos
por parte de pais e professores, é nessa fase que se constroem as fundações que
mais tarde darão sustentação a características como a desenvoltura na linguagem
e o raciocínio lógico — ou seja, a base de um capital humano sólido.
Apesar dessas evidências, boa parte das
políticas de educação no Brasil ainda passa ao largo da
primeira infância. Felizmente, isso começa a mudar, seguindo uma tendência
originada nos Estados Unidos. Lá, há dez anos, um grupo de pesquisadores
liderado pelo pediatra Jack Shonkoff, professor da Universidade Harvard, decidiu
reivindicar a devida atenção à etapa inicial da vida.
“Havia uma revolução acontecendo nos
estudos do cérebro”, diz Shonkoff. “Esses achados científicos precisavam ser
traduzidos para os formuladores e gestores de políticas públicas.”
O grupo deu origem ao Fórum Nacional do
Desenvolvimento Infantil, que reúne médicos, psicólogos, educadores e
economistas, entre outros especialistas. Seu trabalho: disseminar o que a ciência tem a dizer para gestores públicos,
pais e professores de creches e escolas da primeira infância sobre como dar uma
educação adequada aos pequenos, principalmente os mais pobres.
E, dessa forma, contribuir para dar aos
filhos de famílias carentes uma chance melhor de aproveitar os estudos e
vencer, na idade adulta, as barreiras que atrasam a redução da desigualdade.
O grupo de Shonkoff obteve vitórias nos
Estados Unidos. Na última década, pelo menos seis estados americanos fizeram
mudanças em seus programas voltados para mães e bebês com base nos cursos,
palestras e consultorias prestadas pelos especialistas do fórum.
Recentemente, o trabalho começou a ser
replicado no Brasil. Em busca de uma atuação em países emergentes, em 2012, o
centro de pesquisa liderado por Shonkoff, em Harvard, se uniu à Fundação Maria
Cecília Souto Vidigal, entidade paulista dedicada à primeira infância.
Juntas, as duas instituições têm se
empenhado em levar políticos e gestores públicos brasileiros para passar
períodos de uma semana nos Estados Unidos. Nessas ocasiões, eles participam de
cursos sobre como o poder público pode atuar para melhorar a educação infantil.
Mais de 30 deputados federais fizeram
parte das três turmas que ocorreram desde 2012 — a maioria passou a compor a
frente parlamentar da primeira infância, hoje formada por 40 deputados de mais
de 20 partidos. Gestores de áreas como educação e saúde de municípios e dos
ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social também participaram dos
cursos.
“Originalmente, os americanos não
promoviam esses cursos rápidos”, diz Eduardo Queiroz, presidente da Fundação
Maria Cecília Souto Vidigal. “Eles foram uma criação nossa para ajudar a
mobilizar os políticos e os administradores públicos.”
Um dos principais resultados obtidos
foi a aprovação, na Câmara dos Deputados, em dezembro de 2014, do Marco Legal
da Primeira Infância — o projeto agora vai para o Senado. Caso aprovada, a lei
exigirá dos municípios a criação ou adesão a um programa de atenção aos pais e
às crianças de até 6 anos.
Também está em gestação no Ministério
da Saúde um programa nacional de acompanhamento de bebês. “O objetivo é que
nenhuma mãe deixe de ter apoio para educar os filhos”, diz o deputado gaúcho
Osmar Terra, autor da lei.
Na maioria dos casos, as medidas
recomendadas pelos especialistas não exigem grande investimento nem tecnologia
avançada. Trata-se, basicamente, da boa e velha prática de dar às crianças a
atenção de que elas precisam.
Um exemplo de programa que já atua
assim é o Mãe Coruja Pernambucana, do governo estadual. Mais de 130 000 mulheres já
foram atendidas pelo programa desde 2007. Durante a gestação, elas recebem
aulas sobre cuidados com os bebês. Até 2013, a maioria das instruções era
voltada para a redução da taxa de mortalidade infantil no sertão de Pernambuco
— que de fato caiu 30% em quatro anos.
Depois que a ex-primeira-dama Renata
Campos foi a Harvard numa das viagens promovidas pela Fundação Maria Cecília
Souto Vidigal, o Mãe Coruja passou a incluir instruções sobre como os pais
devem ler histórias para os filhos, estimular o raciocínio lógico com
brinquedos, que começaram a ser doados pelo governo, e sobre a importância de
não expor as crianças ao estresse de presenciar brigas entre os pais — situação
que, de acordo com os estudos, é danosa ao desenvolvimento do cérebro infantil.
Muitas vezes, boa parte do trabalho é
educar os pais. Há um ano e meio, a prefeitura de Boa Vista começou a ensinar
gestantes e mães de crianças pequenas a estimular os filhos para que eles
desenvolvam habilidades como o raciocínio lógico e a linguagem.
Em troca de um enxoval doado pela
prefeitura, as mães se comprometem a aceitar as visitas em casa das equipes de
especialistas treinados pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e a
participar de cursos — a atual prefeita, Teresa Surita, era deputada federal em
2012 quando participou de uma das viagens a Harvard.
“Meu objetivo é fazer em Boa Vista o
que aprendi nos Estados Unidos”, diz Teresa. “Os estudos mostram que ações
elementares, como contar histórias para os filhos e levá-los ao parque, têm um
efeito positivo enorme no desenvolvimento de uma criança de baixa renda”, diz
Alicia Matijasevich, professora de medicina preventiva na Universidade de São
Paulo.
Ciência aplicada
Outro braço da parceria de Harvard com
a fundação envolve um grupo de 20 acadêmicos brasileiros — a médica Alicia é
uma integrante. Eles se reúnem duas vezes ao ano para discutir achados
científicos sobre a primeira infância e decidir o que deve ser disseminado em
cursos, palestras e entrevistas. Então, elaboram um documento, que é enviado ao
Instituto Frameworks, sediado em Washington.
O Frameworks ajuda os acadêmicos a
encontrar a melhor maneira de transmitir ao público conceitos que, na linguagem
científica, podem parecer complicados. Um exemplo: para transmitir a ideia de
que sustos causados por brigas e violência doméstica são prejudiciais ao bebê,
o instituto cunhou a expressão “estresse tóxico”.
Os termos criados entraram no jargão
dos políticos americanos e foram usados pelo presidente Barack Obama em um dos
principais discursos de seu segundo mandato. “A incorporação dos conceitos por
políticos e formadores de opinião faz com que a população dê mais atenção ao
tema”, diz Michael Baran, diretor do Frameworks.
No Brasil, um dos problemas é a falta
de avaliação das ações realizadas. “Estamos atrasados em pesquisas e
experimentos para mensurar os resultados de programas voltados para os
pequenos”, diz Naércio Menezes Filho, professor de economia da escola de
negócios Insper e coordenador do grupo de pesquisadores no Brasil. Dessa forma,
se houver equívocos, não há correção de rota.
“Toda política pública deve ser
avaliada”, afirma o economista Flávio Cunha, professor da Universidade da
Pensilvânia e um dos integrantes do grupo de acadêmicos brasileiros. “Do
contrário, não dá para comparar os custos dos programas e os benefícios que
proporcionam.” Os poucos estudos de acompanhamento de crianças no Brasil são
voltados para o diagnóstico dos problemas da infância. E o resultado encontrado
é preocupante.
Pesquisadores da USP e da Universidade
Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, desde 1982 vêm acompanhando crianças
de sucessivas gerações nascidas na cidade gaúcha. No grupo mais recente, de
2004, foi identificado que, aos 12 meses de idade, 21% tinham suspeita de transtorno
de desenvolvimento do cérebro. Aos 6 anos, 14% tinham transtorno psiquiátrico,
que resulta em mais agressividade, maior probabilidade de sofrer de depressão e
mais risco de envolvimento no crime.
A incidência dos problemas é maior
entre crianças pobres. Para reverter esse quadro e melhorar o capital humano no
futuro, o Brasil precisa aproveitar as descobertas da ciência e acelerar as
mudanças nas políticas da primeira infância.