“Na Amazônia,
tanto as crianças como os adultos se sentem como partes integrantes do
ambiente. A natureza não é um cenário. Eles são a natureza.”
A paulistana
Renata Meirelles é educadora e já percorreu o Brasil investigando brincares de
todas as regiões. Em parceria com o documentarista David Reeks, ela criou o
Projeto Bira (Brincadeiras Infantis da Região Amazônica) e passou dez meses
brincando com crianças de comunidades indígenas e ribeirinhas no Pará, Amapá,
Amazonas, Roraima e Acre, lugares onde o corpo é o brinquedo, e a floresta
imprime ritmo próprio à vida das pessoas.
Como é o brincar
na Amazônia?
Acho que a
primeira característica é que lá as crianças têm o tempo e o espaço para
brincar. Outro elemento, que é um tanto óbvio, é o fato de que a natureza está
ali disponível em todos os aspectos para as crianças explorarem. A brincadeira
começa fazendo coisas do universo adulto como caçar, pescar, fazer farinha.
Eles brincam "de verdade" e podem passar até oito horas por dia em
uma pescaria, se divertindo. Isso acontece também porque eles têm uma relação
com o tempo muito diferente do das crianças das cidades. O tempo da floresta é
o tempo da experiência. Por isso as crianças permanecem muito mais tempo em uma
atividade.
Qual é a
importância que se dá ao brinquedo?
Construir
brinquedos na floresta é uma parte muito importante do brincar. Mas a ideia é
fazer o brinquedo para deixá-lo vivo, não para guardá-lo. Em uma comunidade
indígena dos wapixanas, em Roraima, construímos um pião feito da semente do
tucumã com as crianças. Passamos uma tarde inteira brincando, porque é um pião
difícil de fazer.
No dia seguinte eu passei pelo local onde estávamos e percebi que um dos piões
ficou no chão, estava sujo. Fui atrás do dono para devolver o brinquedo, e ele
me disse: "Renata, a brincadeira acabou". Lá a brincadeira começa
sempre pelo início: fazer o brinquedo para depois brincar com ele.
Como é a transmissão
do repertório de brincadeiras?
Isso ocorre
silenciosamente, fazendo junto sem precisar dar explicações ou regras, mas
tentando e aprendendo dentro da própria brincadeira.
Que jogos você
encontrou na Amazônia?
Existe o jogo da
onça, que é muito popular entre as comunidades. Outro jogo muito presente entre
eles é o dominó, que todos jogam o tempo inteiro. No caso do jogo da onça, o
que eles costumam fazer é riscar o tabuleiro no chão de madeira das casas. Eles
usam faquinhas para riscar, e o tabuleiro fica lá sempre. Se você tem vontade
de jogar, é só sentar no chão, pegar umas sementes e começar.
Como é a relação
das crianças na Amazônia com a água?
O melhor brinquedo
da Amazônia é o rio. O poder da água é maior até que o da floresta, até porque,
como chove muito, em vários momentos a floresta fica embaixo d'água. As
crianças se jogam no rio o tempo inteiro e fazem um monte de brincadeiras:
pega-pega, pular de árvore, barco, imitar peixe, pescar. Mantêm uma relação de
respeito pela água, conhecem seus limites e não tentam desafiá-la, mas dialogam
com ela. Uma vez, perguntei a uma menina quem a tinha ensinado a nadar tão
rápido e bem. Ela me respondeu: "Ué, foram as águas aqui do
igarapé!", como quem diz "é óbvio que eu converso com a águas, é
assim que me relaciono com elas".
As crianças da
cidade conseguem se relacionar com a natureza de modo semelhante?
É complicado,
porque o contato profundo com a natureza não é só ir ao parque Ibirapuera ou
plantar vasos na escola. Ele exige tempo para a exploração, para acompanhar os
ciclos da natureza. Isso não é impossível nas cidades, mas naturalmente é mais
difícil. Acho que as crianças, até os seis anos, deveriam passar o maior tempo
possível na areia e na água. Eles se acalmam, estimulam a contemplação e a
paciência. Você nunca vê uma criança eufórica na areia. Ela senta lá e
devaneia, mergulhando em algo mais profundo. Fica muito mais concentrada no que
está fazendo. O contato com a natureza é isso.
Qual é a
importância do corpo nas brincadeiras da Amazônia?
Para eles, o corpo
é o brinquedo. E eles o utilizam o dia inteiro e em tudo o que fazem. Lá, o
corpo é muito livre, as crianças têm capacidades físicas muito amplas. Elas são
fortes, robustas, flexíveis. O curioso é que elas têm menos medo de arriscar o
corpo, mas medo do escuro, do boto, da cobra grande. Os limites delas são os
seres mitológicos, o imaginário. Fisicamente, elas podem tudo.
O que há de
semelhante entre as crianças das cidades no resto do Brasil e as da Amazônia?
Criança é criança
em qualquer lugar do mundo. Por isso as buscas são as mesmas, só acontecem de
um jeito um pouco diferente. Até no próprio repertório de brincadeiras isso
fica claro. Encontrei brincadeiras de palmas, amarelinha e elástico exatamente
como as que eu aprendi quando criança.
Quais são as
buscas?
Por trás das
brincadeiras que permanecem no tempo, existe o fato de que as crianças precisam
brincar disso para se relacionar com algum aspecto humano. Essa é a busca: se
relacionar com algo que é único do homem, ligar-se a algo comum a todos nós. É
como se a camada mais profunda do ser humano, o rio que passa no fundo do
homem, fosse o mesmo para todos. Cada um vai trazer isso à superfície -que
seria a cultura- do seu jeito, com sua cantiga, seu gesto. Mas a fonte da qual
bebemos é única.
Mais informações no site do Território do Brincar .
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